Em 1961, em um texto intitulado “A fuga do laboratório” (The flight from the laboratory), Skinner ressaltou a importância da experimentação em laboratório para o desenvolvimento da Psicologia e analisou algumas causas prováveis de muitos psicólogos a terem abandonado. Uma destas causas seria o que ele denomina de “a fuga para as pessoais reais”. Do meu ponto de vista, isto se refere a uma coisa comum entre psicólogos brasileiros: a escolha pela intervenção/atuação profissional justificada pela necessidade de ajudar imediatamente os cidadãos de um país tão desigual e cheio de problemas como o Brasil. Desta perspectiva, fazer pesquisa seria uma coisa muito distante da realidade, muito fútil talvez frente às necessidades prementes da realidade nacional…
Este texto, e sobretudo a parte que trata da “fuga para as pessoas reais”, explicita as contingências diferentes e por vezes conflitantes envolvidas no pesquisar (fazer ciência básica e aplicada) e no intervir/atuar profissionalmente. Essa questão é fundamental tanto no caso do comportamento humano “individual” como no caso dos fenômenos sociais/culturais. Acho que vale a pena refletir sobre o tema a partir da citação abaixo (retirada de uma reimpressão do texto na Behavioral and Brain Sciences, 7 (4), 511-546 – os destaques em negrito são meus):
“A fuga para as pessoas reais. Não é surpreendente que os psicólogos tenham sido atraídos pelo interesse humano pela vida real. O sujeito experimental no laboratório é apenas parte de uma pessoa, e frequentemente uma parte desinteressante, enquanto a pessoa inteira é uma fonte fascinante de reforço. A literatura floresce por esta razão. Os psicólogos há muito tempo aprenderam a pegar emprestado do campo literário. Se uma palestra torna-se cansativa, ou se um capítulo parece maçante, basta apresentar um estudo de caso e tudo literalmente ‘torna-se vivo’/‘anima-se’ [come to life]. A receita é tão infalível que se têm produzido palestras ou textos que se aproximam de nada além de estudos de caso. Ao apelar para tal recurso por seus efeitos pedagógicos ou terapêuticos, os psicólogos têm sido afetados eles mesmos por tais reforços; seus modos de ação como cientistas foram desviados….
“Em um mundo no qual o treino ético é bem difundido, a maioria das pessoas é reforçada quando consegue reforçar outras pessoas. Neste mundo a gratidão pessoal é um poderoso reforçador generalizado. Não podemos criticar os psicólogos afirmando que, como outras pessoas de boa vontade, eles querem ajudar seus semelhantes – seja um por um na clínica ou nação por nação através, por exemplo, de ajuda internacional [international goodwill]. Podemos concordar que o mundo seria um lugar melhor se mais pessoas se preocupassem com problemas pessoais e políticos. Mas não devemos esquecer que medidas paliativas [the remedial step] são ações de curto prazo e que não são o único caminho levando ao mesmo objetivo. O vigoroso prosseguimento de uma ciência do comportamento, aplicada ao problema amplo do planejamento cultural, pode ter conseqüências de maior alcance. Se tal alternativa promissora é realmente viável, qualquer um capaz de realizar uma contribuição de longo prazo pode sabiamente resistir aos efeitos de outras conseqüências que, não interessa quão importantes possam ser pessoalmente, são irrelevantes para o processo científico e confinadas à ação paliativa de curto prazo. Um exemplo clássico de outro campo é o de Albert Schweitzer. Aqui está um homem brilhante que, por razões que não precisamos discutir, dedicou sua vida a ajudar os outros – um por um. Ele ganhou a gratidão de milhares, mas não devemos esquecer o que ele poderia ter feito ao invés disto. Se ele tivesse trabalhado tão energicamente por tantos anos em um laboratório de medicina tropical, ele teria quase certamente feito descobertas que com o tempo teriam ajudado – não milhares – mas literalmente bilhões de pessoas. Não sabemos o bastante sobre Schweitzer para afirmar porque ele tomou o caminho de curto prazo. Será que ele não podia resistir às palavras lisonjeiras da gratidão? Será que ele estava se libertando de sentimentos de culpa? Quaisquer que sejam suas razões, sua história nos alerta dos perigos de um modelo cultural [cultural design] que não fornece algum reforço pessoal a favor da ciência pura. O jovem psicólogo que quer acima de tudo ajudar outras pessoas deveria ser levado a ver as conseqüências potenciais tremendas de mesmo uma pequena contribuição à compreensão científica do comportamento humano. Possivelmente, é apenas tal compreensão, junto com os padrões culturais melhorados que se derivarão dela, que irá finalmente aliviar as ansiedades e penúrias da espécie humana.” (Skinner, 1984, p. 513)
pois é Angelo, essa discussão é bem delicada, uma porção de outras questão saltam dela. Me pergunto se realmente intervenção e pesquisa são práticas excludentes, e me pergunto também se o “corpo a corpo” produz efeitos menos importantes do que o efeito produzido pelo planejador cultura.
Embora já tenha lido falas do Skinner sobre a prática clínica, nunca consegui inferir seu posicionamento de forma tão clara quanto nesse texto e a questão levantada não é a velha polêmica sobre “ser a prática clínica uma derivação legítima da pesquisa básica”, e sim sobre o alcance desta prática.
Está claro que ele espera hegemonia, mas não acredito que isso acontecerá sem a apropriação individual dos pressupostos do BR…. de outra forma o planejador cultural guiaria nossos passos sem que soubessemos pq e para que, estando então numa posição hierárquica diferente da maioria o que por si só já seria um grande problema……………
em tempo….. tomei a prática clínica como um exemplo de intervenção
Com décadas de atraso, gostaria de comentar algumas coisas sobre as palavras de Andréa acima.
1) Não acho que intervenção e pesquisa são práticas necessariamente excludentes. No entanto, acho que sim, que muitas contingências envolvidas nessas duas práticas são conflitantes. Por ex., o objetivo principal de um profissional (i.e. a consequência que deveria controlar mais fortemente seu comportamento) é o bem-estar do seu cliente (indivíduo, grupo, família, comunidade etc.). Ora, isso pode ser alcançado sem nenhuma nova contribuição à compreensão geral de certo objeto de estudo. Um cliente com fobia pode ser muito bem tratado com dessensibilização sistemática e isso não implicará em novas descobertas sobre fobias, ou sobre os processos comportamentais envolvidos na dessensibilização sistemática. Daí que resolver bem um caso, não ajudará necessariamente a resolver outros. Na produção científica, contudo, o objetivo principal é sempre contribuir para uma melhor compreensão geral de um objeto de estudo – mesmo que isso não traga benefícios relevantes para os participantes da pesquisa.
2) O “corpo a corpo” produz efeitos menos importantes no sentido de a longo prazo afetarem menos pessoas do que avanços científicos sobre o tema. Isso não implica, e Skinner não diria isso, que devamos abandonar a promoção de intervenções profissionais – é claro. Cada coisa tem seu lugar. Mas creio que no Brasil, em especial, e no campo da Psicologia, mais especificamente, a ciência não tem seu lugar adequado.
3) Não entendi o que você quis dizer com “ele espera hegemonia”.
4) Quanto a seus comentários a respeito da posição hierárquica de planejadores culturais, me pareceu que você tomou qualquer hierarquia como intrinsecamente problemática. Independente de isso ser verdadeiro ou não, creio que um mundo sem qualquer tipo de hierarquia é impossível. Pais estão em posição hierárquica diferente de seus filhos, políticos estão em posição hierárquica diferente de seus eleitores, em um grupo de pesquisa pesquisadores estão em posição hierárquica diferente de estudantes…
Abraços!